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Democracia racial

Democracia racial é um termo que diz respeito a uma suposta igualdade entre raças diferentes, mostrando-se como algo distante de ser alcançado ainda no século XXI.
Infelizmente, a democracia racial ainda é uma utopia.
Infelizmente, a democracia racial ainda é uma utopia.

Falar em democracia racial é complicado. Em uma sociedade utópica, a democracia racial seria um dos principais pilares fundantes da cultura. Porém, vivemos em um mundo real, onde os fatos estão muito distantes da utopia.

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O que é democracia racial?

Democracia pressupõe igualdade e livre participação. Em uma nação democrática, existem oportunidades e direitos similares que garantem a igualdade entre todos os cidadãos da nação. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 atesta, ao menos teoricamente, a igualdade de todos e todas garantida pela lei.

O art. 5º de nossa constituição afirma a igualdade e a não discriminação por meio destas palavras: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”|1|.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que todo ser humano tem direitos invioláveis que devem ser respeitados em qualquer situação. No inciso I do art. 2º, afirma-se que “todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”|2|.

Os dois documentos citados convergem apontando que não há elemento que deva servir de distinção entre pessoas para que um direito seja negado a elas, entre tais elementos, temos o fator "raça". Pensar em uma democracia racial, nesse sentido, é pensar que a raça não deve ser fator de diferenciação entre os cidadãos, algo que vai além, muitas vezes da aquisição de direitos.

Em uma democracia racial, deve haver igualdade entre pessoas de raças diferentes, não havendo distinção em quesitos como a renda, o acesso à informação e ao conhecimento, o acesso à escolarização e o acesso ao emprego e à propriedade. Se um país apresenta índices díspares entre negros e brancos nos quesitos apresentados acima, não se pode afirmar que nesse país há democracia racial.

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O que é o “mito da democracia racial”?

A palavra mito, oriunda do grego antigo “mythos”, designa uma narrativa fantasiosa, surreal, algo que não condiz com a verdade imediata. Associando a palavra mito ao termo “democracia racial”, obtemos um novo termo que afirma a inexistência da democracia racial.

O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre |3|, em Casa Grande e Senzala, parece ter sido o primeiro grande escritor a colaborar com a disseminação do mito da democracia racial no Brasil. Segundo o sociólogo brasileiro, a sociedade colonial brasileira começou a produzir uma miscigenação racial e uma espécie de relação harmoniosa entre negros escravizados, negros libertos e brancos.

Durante o início do século XX, em que a comunidade científica e alguns resquícios da antropologia evolucionista apresentavam teorias eugênicas de branqueamento da raça, como fator de evolução, Freyre caminha na contramão ao indicar que a miscigenação era o melhor caminho para a evolução social. Porém, a visão ingênua do pensador pernambucano deixou de considerar o estupro como a base da miscigenação e o sentimento de posse do senhor de engenho em cima de seus escravos e, principalmente, de suas escravas.

Para desmistificar o mito da democracia racial no Brasil, temos, notoriamente, o trabalho do sociólogo Florestan Fernandes, que era doutor em Sociologia pela USP, foi professor da mesma instituição na década de 1960 e um dos primeiros brasileiros a se dedicar ao estudo do racismo no Brasil por um viés sociológico, e do antropólogo Kabengele Munaga, congolês naturalizado no Brasil, Munaga é doutor em Antropologia pela USP, além de ter lecionado na mesma instituição.

Os estudos deles foram decisivos para acabar de vez com a ideia de que havia uma democracia racial no Brasil. Fernandes, em sua tese A integração do negro na sociedade de classes, afirma que

“[...] a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita” |4|.

Isso indica que não há uma democracia racial no Brasil, já que as pessoas de pele negra não estão inseridas devidamente no mercado capitalista como as pessoas brancas estão. As origens dessa não inserção do negro na sociedade de classes encontram-se no cenário pós-abolição da escravatura, em que não foi oferecido à população negra liberta qualquer apoio educacional, financeiro e social, criando uma população marginalizada.

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Munaga, autor um pouco mais recente que Fernandes, diagnostica uma crise que vem causando a destruição dos direitos já adquiridos por meio de políticas públicas em nosso país. Segundo o pensador, o racismo aqui, ao mesmo tempo em que é evidente em alguns casos, também é, na maioria das vezes, velado. A crença de que vivemos em uma democracia racial é falsa. O Brasil nunca foi uma democracia racial, visto que há aqui uma insistente desigualdade, inclusive no tratamento, entre negros, indígenas e brancos.

Em discurso proferido na entrega do Prêmio USP de Direitos Humanos, em reconhecimento à pesquisa e ao engajamento do professor no enfrentamento das questões raciais no Brasil, Munaga diz:

“Para muitos, o Brasil não é um país preconceituoso e racista, sendo as violências sofridas pelos negros e não brancos, em geral, apenas uma questão econômica ou de classe social, que nada tem a ver com os mitos de superioridades e de inferioridade racial. Nesse sentido, os negros, indígenas e outros, não brancos, são discriminados porque são pobres. Em outros termos, negros, brancos e pobres, negros e brancos da classe média, negros e brancos ricos (não sei quantos negros ricos tem nessa sociedade), não se discriminam entre si, tendo em vista que eles pertencem todos à mesma classe social. Uma bela mentira”|5|.

Quais as consequências do mito da democracia racial para a sociedade brasileira?

O racismo, assim como a misoginia, a homofobia e a intolerância religiosa são problemas sociais, éticos e jurídicos que precisam ser severamente enfrentados. O decreto n. 7716, de 5 de janeiro de 1989, define quais são os crimes resultantes de raça ou de cor e como eles devem ser punidos.

Acontece que, muitas vezes, o racismo não se expressa de maneira evidente e clara, gerando uma situação de falsa igualdade, o que dificulta um enfrentamento real. Crimes de ofensa racial são mais facilmente tipificados e punidos, porém, o racismo estrutural |6| permanece em nossa sociedade. Se quisermos, de fato, acabar com o racismo, é preciso primeiro reconhecer que o Brasil é um país extremamente racista.

Somente políticas públicas de promoção da equidade, de superação de quadros históricos de desigualdade e de reconhecimento da necessidade de ajuda às populações historicamente marginalizadas (negros e indígenas de nosso país) podem impulsionar a luta contra todas as formas de racismo.

Um bom exemplo de política pública que auxilia na luta contra a discriminação racial é a criminalização do racismo por meio do decreto 7716/89. Além disso, a confecção de campanhas publicitárias governamentais, campanhas nas escolas e a ampla conscientização da população podem ser ferramentas valiosas para se acabar de vez com a prática de crimes de motivação racial.

Tudo aquilo que já foi conquistado (pela luta dos movimentos negros) deve ser mantido. Mais além, é preciso se fazer muito para que possamos, um dia, sonhar com um país em que haja uma verdadeira democracia racial.

Notas

[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. 53. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018, p. 9.

[2] DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ONU, 1948.

[3] Gilberto Freyre foi um dos principais sociólogos brasileiros do período pré-científico (assim chamado pelo fato de que os estudiosos eram intelectuais sem formação em Sociologia, pois não existia o curso superior em Sociologia e nem área de atuação no Brasil até 1933). Seus estudos sobre o período colonial detalham importantes nuances sobre o modo de vida e organização da sociedade colonial brasileira.

[4] FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Nacional, 1965, p. 24.

[5] Confira aqui trechos do discurso e matéria do portal GGN sobre Kabengele Munaga.

[6] O racismo estrutural é uma forma de racismo implícita na sociedade e nas ações cotidianas. Ela não é, necessariamente, a prática de agressões e de discriminação direta de uma pessoa em cima da outra com base na raça. É a exclusão de uma etnia ou cor (a negra e a indígena, no caso do Brasil) por conta de questões históricas. Historicamente, os negros foram escravizados no Brasil e, após a sua abolição, nenhuma medida de reparação e reinserção dos ex escravos foi tomada, o que legou à população negra brasileira a dificuldade de estudar, de se inserir no mercado de trabalho formal e de se integrar com dignidade à sociedade.

Publicado por Francisco Porfírio
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